Por trás da crise climática, a desigualdade de gênero e a sobrecarga invisível das mulheres atingidas

No contexto de mudanças climáticas, os mais atingidos têm raça, classe e gênero bem marcados, e estas alterações escancaram desigualdades e afetam de forma desigual homens e mulheres

O peso das mudanças climáticas recai de forma desigual sobre as mulheres, que têm que istrar as diversas consequências dos desastres, o cuidado com os outros e a busca de perspectivas para o futuro. Foto: Francisco Proner / MAB
O peso das mudanças climáticas recai de forma desigual sobre as mulheres, que têm que istrar as diversas consequências dos desastres, o cuidado com os outros e a busca de perspectivas para o futuro. Foto: Francisco Proner / MAB

Se, por um lado, as mudanças climáticas são parte de uma crise global, por outro, seus impactos são locais, têm nome e sobrenome e uma face que é, sobretudo, feminina. Enquanto o mundo debate políticas ambientais, são as mulheres nas periferias, nos campos e nas comunidades ribeirinhas que enfrentam na pele os piores efeitos de um planeta em colapso.

No Rio Grande do Sul, elas viveram enchentes que arrastaram suas casas e a estabilidade de suas famílias, assumindo a reconstrução invisível do cotidiano. Em Rondônia, são as secas e queimadas que as desafiam, transformando rios em poeira e terras férteis em desertos, com sobrecarga redobrada na busca por água e alimento. Apesar das diferenças geográficas, as duas realidades têm um fio comum: são as mulheres que carregam o peso maior da crise ambiental, seja quando a água sobe ou mesmo quando ela falta.

Os eventos climáticos potencializam desigualdades e geram sobrecarga sobre as mulheres, no cuidado com a casa e com as pessoas. Foto: Francisco Proner / MAB
Os eventos climáticos potencializam desigualdades e geram sobrecarga sobre as mulheres, no cuidado com a casa e com as pessoas. Foto: Francisco Proner / MAB

Potencializada em eventos climáticos, “a desigualdade de gênero é funcional ao sistema político e econômico”, alerta a professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Lorena Fleury. Segundo ela, a desigualdade “favorece o aporte de um grande volume de trabalho não remunerado e/ou mal remunerado, que permite a expansão das taxas de lucro e mais-valia. Ao sistema político, a desigualdade de gênero é funcional ao concentrar o poder, excluir a participação de amplos setores da sociedade e reforçar estruturas autoritárias e hierárquicas de tomadas de decisão”, destaca Fleury.

A professora, que coordena o Comitê de Pesquisa em Sociologia Ambiental e Ecologia Política da Sociedade Brasileira de Sociologia, explica que, em um contexto de desastre climático, as mulheres ficam especialmente sobrecarregadas ao tentar garantir a segurança das pessoas que necessitam de cuidado, enquanto buscam restabelecer suas próprias condições. No que diz respeito à renda, ela ainda analisa:

“Os dados demonstram que, ainda que hoje no Brasil a maior parte dos lares tenha como principal fonte de renda o trabalho remunerado de mulheres, elas ganham desproporcionalmente menos do que homens para realizarem as mesmas tarefas, além de contarem com limites para a promoção e ascensão em suas carreiras. Em um contexto de desastre, no qual a segurança material e financeira das pessoas é desestabilizada pelas perdas patrimoniais, esses limites econômicos fazem com que seja mais difícil para as mulheres se restabelecerem dos eventos críticos”.

Crise hídrica transforma rotina das atingidas na Amazônia

Simone Alves de Lima, de 26 anos, é mãe de dois filhos e, com o companheiro, mora na Comunidade Brasileira, no Distrito São Carlos, em Porto Velho. O local foi atingido por uma seca severa entre setembro e dezembro de 2024 e ela viveu com a família os desafios impostos pela escassez: “Essa seca foi a pior de todas, porque a gente ficou totalmente sem água e tinha que carregar água dos buracos que ficavam na praia ou no rio. Depois, quando secou totalmente, conseguimos do poço da escola, mas também não prestava para beber”, relata Simone.

Ela e o companheiro são pescadores e, além de viverem os desafios da falta de água, também ficaram totalmente sem renda neste tempo. A cada dois ou três dias, a família saía em busca de água. Os adultos com baldes e as crianças de 5 e 10 anos com suas garrafinhas, andavam quilômetros para encher a caixa d’água da casa, de 250 litros. Simone – como grande parte das mulheres brasileiras – assume o cuidado com os filhos, o preparo da alimentação para a família e a limpeza da casa e, além das angústias geradas pela insegurança alimentar, também caía sobre ela a responsabilidade pela economia da água:

“O mais difícil para mim foi o banho, o cuidado com as coisas de casa. Como não tinha água, eu deixava as coisas sujas. Tinha que tomar banho só com um pouquinho de água e não conseguia lavar roupas e louça. Foi muito difícil também com o banho e as coisas das crianças, e mesmo pra cozinhar, não fazia feijão ou massa porque teria que usar muita água. Eu ficava regrando, usando bem pouquinho, senão ia acabar e tínhamos que carregar tudo novamente’, conta Simone.

Integrante da coordenação do MAB na Amazônia, Missay Nobre, aponta que em 2023 já houve uma seca intensa, que seguiu em 2024, com a fase mais crítica entre setembro e outubro. Ela coordena o MAB em Rondônia, acompanha as atingidas que sofrem recorrentemente com as secas e reitera o que diz Simone: “As mulheres que moram nas comunidades que sofrem com a crise climática já possuem um grau de vulnerabilidade. Em sua maioria são donas dos lares, pretas e pardas, fora do emprego formal. Isso é um dos fatores que faz com que elas se preocupem ainda mais com a crise climática, pois são elas quem cozinham, lavam roupa, cuidam dos filhos e muitas das vezes fazem o trabalho da roça”.

Maria Nilce da Silva, atingida da comunidade de Brasileira, ao fundo o Rio Madeira seco e coberto de fumaças em setembro de 2024. Foto: Raissa Dourado / MAB
Maria Nilce da Silva, atingida da comunidade de Brasileira, ao fundo o Rio Madeira seco e coberto de fumaças em setembro de 2024. Foto: Raissa Dourado / MAB

Missay pontua ainda que a crise climática amplifica situações já existentes, enfrentadas diariamente pelas mulheres: a desigualdade de gênero, o racismo ambiental e as vulnerabilidades socioambientais. Estas experiências são vivenciadas por cada atingida de uma forma diferente, afetando, muitas vezes, a saúde física e psicológica.

“As mulheres ficam ansiosas, pois agora elas observam mais o rio para saber quando seca e quando enche. Nos períodos de cheias, as doenças transmitidas por mosquitos aumentam, sem contar os animais peçonhentos que aparecem com mais frequência, como cobras, aranhas, escorpiões e os jacarés, ocasionando diversos acidentes”, conta Missay.

Rio Grande do Sul: Sobrecarga, ansiedade e luta por reparação

No Brasil, 2024 trouxe desafios extremos não só em Rondônia, com as secas, mas também quando a maior enchente da história atingiu mais de 2,3 milhões de pessoas no Rio Grande do Sul. Mônica Grohe foi uma delas.

Mônica Grohe vive o desafio de cuidar dos filhos e dos pais após a enchente que atingiu o Vale do Taquari (RS) em 2024. Foto: Marta Fleita / MAB
Mônica vive o desafio de cuidar dos filhos e dos pais após a enchente que atingiu o Vale do Taquari (RS) em 2024. Foto: Marta Fleita / MAB


Moradora de Lajeado, ela tem 31 anos e dois filhos e hoje se divide entre o cuidado com as crianças e com os pais, que lutam para reconstruir a casa atingida pela enchente. Com mais quatro irmãos, ela sente a responsabilidade de forma desigual no cuidado com os pais e relata que, por ser mulher, percebe que há maior expectativa e cobrança, que geram exaustão física e emocional. “Na verdade, atualmente, com tudo que está acontecendo, em vez de eu ajudar, eles me ajudam. Tem dias que são difíceis pra mim, porque eu não estou conseguindo ajudar da forma que eu queria”, conta a atingida, emocionada.

Com o companheiro preso, a promotora de vendas desempregada busca sozinha e diariamente formas para manter as despesas do lar, a alimentação e os cuidados com as crianças, e sente o peso das inúmeras responsabilidades que afetam a saúde mental: “Eu trato a ansiedade há muito tempo. Porque tu fica com crise só de pensar. Eu sofro antecipadamente por todas as coisas que não consigo resolver”, conta Mônica.

Atualmente, no Rio Grande do Sul, 75% das famílias organizadas no MAB nas áreas das enchentes são lideradas por mulheres (1090 de 1454).  Enquanto empenham a vida na luta coletiva por reparação e direitos, buscam em suas próprias casas o equilíbrio entre os cuidados necessários com idosos e crianças e os meios para se recuperarem das marcas deixadas pela enchente.

Alexania Rossato, integrante da coordenação nacional do MAB no Rio Grande do Sul, aponta que o sentimento de Mônica é muito comum entre as atingidas e analisa que, “como espaço privado, a casa é de responsabilidade da mulher, o que lhe confere maior responsabilidade sobre o cuidado e a manutenção, segundo os padrões da sociedade patriarcal”.

O cenário é comum na vida de muitas atingidas: as enchentes agravam situações pré-existentes e enfatizam as situações de vulnerabilidades: pobreza, doença, desemprego, violências e desafios com a saúde mental. “O cuidado com a família recai sempre sobre as mulheres e quando você não consegue dar conta, por uma situação de vulnerabilidade, você também se vê incapaz de resolver os problemas familiares e isso ocasiona problemas psicológicos”, destaca Alexania.

A professora Lorena Fleury reforça que a crise climática potencializa uma realidade que, na verdade, já é vivida pelas mulheres: “Elas já enfrentam cotidianamente uma série de dificuldades e barreiras impostas à sua existência e, possivelmente, já vivem em um limite tênue de saúde mental. Com o desastre, esse limite por vezes é rompido, impondo um peso ainda maior para que essas pessoas consigam organizar seus modos de existência em um contexto de desestruturação social”.

Juntas somos mais fortes

A rede de apoio e a presença de outras mulheres fortalecem as atingidas e dá força para seguir em frente. Foto: Francisco Proner / MAB
A rede de apoio e a presença de outras mulheres fortalecem as atingidas e dão força para seguir em frente. Foto: Francisco Proner / MAB

Apesar das adversidades, as mulheres atingidas encontram força na coletividade. Seja nas longas caminhadas em busca de água ou na reconstrução pós-enchente, elas transformam a dor em resistência através da união entre companheiras, amigas, mães e irmãs, e encontram no MAB a força e a esperança para seguir lutando. Juntas, enfrentam não apenas a crise climática, mas também o machismo estrutural e as desigualdades que tentam silenciá-las; provando que, mesmo esgotadas, seguem em luta por direitos, reconhecimento e um futuro onde a justiça ambiental seja também justiça de gênero.





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