“Com a barragem, a água ficou ruim; com a hidrovia, ficaremos sem ela”: Arpilleras denunciam megaprojetos no Pará

Mulheres ribeirinhas de Cametá denunciam, através da arte e costura, os impactos da Hidrovia Tocantins-Araguaia em suas vidas

Oficina promove debate sobre violação de direitos humanos na região. Foto: Anna Mathis / MAB

Em Paruru do Meio, vilarejo ribeirinho à beira do Rio Tocantins, Maria Darcilene convive com as marcas deixadas pela barragem de Tucuruí. Desde que a hidrelétrica entrou em operação, a comunidade perdeu o o direto à água limpa, antes abundante. “A gente vivia da natureza mesmo”, conta ela, lembrando de tempos em que o rio era fonte de vida e sustento. Agora, a água precisa ar por tratamento – um processo que nem todos conseguem pagar ou ar. Muitos moradores precisam buscar água na cidade, sem garantia de que ela seja própria para o consumo. Com a construção da hidrovia prevista para a região, o medo aumenta. “Com a barragem, a gente já tem uma água feia; com a hidrovia, vamos ficar sem ela”, lamenta. O impacto vai além das pessoas: afeta os peixes, as árvores, a terra e o açaí, uma das principais fontes de renda da comunidade. “O que nos resta é continuar reivindicando, pelo menos tentando, na esperança de que um dia o governo tenha pena da gente.”

Mulheres confeccionam peça de Arpillera na Comunidade Paruru do Meio (PA). Foto: Anna Mathis / MAB

Nos dias 16 e 17 de maio, a comunidade Paruru do Meio recebeu uma oficina de Arpilleras organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A atividade reuniu mais de 20 mulheres ribeirinhas da região, em um espaço de escuta, reflexão e denúncia sobre os impactos provocados por grandes obras de infraestrutura, como hidrelétricas e a construção da Hidrovia Tocantins-Araguaia. No primeiro dia de encontro, houve uma roda de debate onde as participantes discutiram questões centrais de seu cotidiano, como o o à água, a sobrecarga no trabalho das mulheres e a luta por direitos frente à violação de seus modos de vida, assim como o planejamento inicial da peça a ser produzida. No segundo dia, as mulheres começaram a confecção da obra, usando pedaços de pano, remendos, linhas e agulhas para contar a história. Como resultado da oficina, três Arpilleras foram bordadas coletivamente, denunciando a construção da hidrelétrica de Tucuruí e o início das obras da hidrovia Tocantins-Araguaia.  

Desde 2013, MAB já realizou oficinas auto-organizadas de Arpilleras em 19 estados brasileiros. Foto: Anna Mathis / MAB

A Hidrovia Tocantins-Araguaia é um megaprojeto de infraestrutura que prevê a adequação do rio Tocantins para permitir a navegação de grandes embarcações ao longo de mais de mil quilômetros, desde o município de Marabá (PA) até o porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA). O projeto envolve a dragagem do leito do rio, a destruição de formações rochosas com uso de explosivos e a construção de eclusas, visando facilitar o escoamento de grãos, minérios e gado produzidos na região Centro-Oeste para exportação. Para isso, está prevista a remoção do Pedral do Lourenço, uma formação rochosa de 43 quilômetros, localizada entre os municípios de Itupiranga e Nova Ipixuna, no Pará.

A hidrovia ameaça profundamente a vida das populações ribeirinhas, especialmente das mulheres, que têm suas rotinas de trabalho, o à água, cultivo de alimentos e vínculos com o território colocados em risco. Elas denunciam que, assim como ocorreu com outras grandes obras, não foram consultadas, nem consideradas nos estudos de impacto. Além disso, a remoção do Pedral afetará habitats de espécies ameaçadas, como o boto-do-Araguaia e a tartaruga-da-Amazônia.

Luta histórica contra megaprojetos na região

Projetada para gerar energia para o polo industrial de Barcarena, a usina hidroelétrica de Tucuruí foi construída entre 1974 e 1985 no rio Tocantins. Apesar da promessa de progresso, vendida desde a ditadura militar brasileira, a barragem causou severos impactos socioambientais que recaíram desproporcionalmente sobre as mulheres das comunidades ribeirinhas.

A construção da barragem resultou na inundação de 2.850 km², deslocando cerca de 32.000 pessoas, incluindo populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas. O alagamento causou a perda de biodiversidade, alteração da fauna, flora, solo, clima e água, além de problemas de saúde, como intoxicação aguda e câncer de pele entre os moradores a jusante da barragem.

As mulheres dessas comunidades foram particularmente afetadas, enfrentando dificuldades para garantir o sustento e o cuidado com suas famílias, devido à degradação ambiental e à perda de autonomia alimentar. A alteração do fluxo do rio degradou a qualidade da água, comprometeu a pesca e inundou terras de cultivo, desestruturando modos de vida baseados na relação direta com a natureza. As mulheres aram a enfrentar dificuldades para garantir o sustento e o cuidado com suas famílias, arcando com os efeitos da contaminação da água, do aumento das doenças e da perda da autonomia alimentar. Décadas depois, elas ainda vivem as consequências de uma obra que nunca considerou suas vozes, nem suas vidas.

A barragem de Tucuruí e a Hidrovia Tocantins-Araguaia compõem um mesmo modelo de desenvolvimento baseado na exploração intensiva dos recursos naturais da Amazônia, para abastecer polos industriais e o mercado externo. Ambas as obras, embora separadas por décadas, compartilham os mesmos impactos sobre o território e sobre os corpos das mulheres ribeirinhas: o rompimento com modos de vida sustentados pela relação com o rio, o comprometimento da qualidade da água, a insegurança alimentar e o silenciamento das populações atingidas nos processos decisórios. Se a barragem inundou florestas, desestruturou comunidades e deixou um rastro de desigualdade, a hidrovia aprofunda esse histórico ao planejar a destruição do Pedral do Lourenço, ameaçando novamente o equilíbrio ambiental e social em nome do transporte de commodities. Mulheres que já enfrentaram os efeitos da barragem agora se veem diante de um novo ciclo de violência institucional travestido de progresso.

Liberação para explosão é concedida

Na última semana, o governador do Pará divulgou um vídeo comemorando a liberação da licença para a derrocagem do Pedral do Lourenço, um projeto que prevê a explosão de aproximadamente 35 quilômetros desse trecho do rio Tocantins, conhecido como berço da biodiversidade aquática da região. A obra, parte do projeto da hidrovia Araguaia-Tocantins, ameaça diretamente a pesca local, principal fonte de alimento e renda para as comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins.

Sem previsão de indenizações para os pescadores, que já enfrentaram prejuízos significativos com a construção da hidrelétrica de Tucuruí, o projeto avança sem a devida consideração dos impactos socioambientais. A hidrovia visa facilitar o transporte de commodities – como grãos, minérios e gado – do Centro-Oeste até o Porto de Vila do Conde, no Pará. Para isso, será necessário dragar o fundo do rio e remover o Pedral do Lourenço, uma formação rochosa natural no leito do Tocantins. A execução do projeto coloca em risco espécies aquáticas, ecossistemas frágeis e os modos de vida tradicionais dos ribeirinhos. O Ministério Público Federal (MPF) contesta a concessão da licença, apontando subnotificações e a falta de consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas. 

No ano ado, durante uma audiência pública organizada pelo MPF, o MAB denunciou a ausência de estudos completos e a falta de diálogo com as comunidades. Desde então, o movimento tem mantido reuniões mensais com os moradores da região, que relatam com preocupação os impactos já sentidos e temem a destruição de seus modos de vida com o avanço da hidrovia.

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